Yoga

A quarta darshana, o Yoga, vai muito além das ginásticas praticadas em certos recantos new age e academias de pilates americanas, sendo uma metodologia de realização espiritual com uma riqueza metafísica muito grande. As posturas do Yoga, conhecidas como asanas, no sistema de Patanjali eram apenas um dos oito membros do Ashtanga Yoga. Os personagens e realizados mais populares do yoga são de número infindável, mas podemos citar, além do próprio Patanjali, Gorakshanath, o criador do Hatha Yoga. Com o objetivo de entender o Yoga, é necessário passar por alguns pontos da darshana do Samkhya, que serve como base para os desenvolvimentos doutrinários e práticos trazidos pelo Yoga.

O samkhya é uma darshana (“ponto de vista”), em que há a dissociação entre purusha e praktri. A partir dessa noção, é perigoso cair no erro de classificar tudo a partir de categorias ocidentais, mesmo porque tais categorias estão vinculadas a um tipo de pensamento filosófico; é o caso de um suposto “dualismo” que poderiam imputar a esse ponto doutrinal básico. Porém, entender dessa forma não só é um erro básico que ocorre devido às diferenças entre pensamento oriental e ocidental, mas também um erro que esquece que tal pressuposto metafísico adquire, no contexto técnico e prático, apenas o caráter de uma “etapa”.

Sim, as doutrinas não existem como um pensamento extático: se há um ponto doutrinal basilar, ele faz parte de um processo, em que o objetivo final é resolver o problema da equação existencial humana, como será possível identificar mais a frente. A pobreza conceitual em matéria de espiritualidade no ocidente logo identificaria o samkhya então como uma doutrina “radicalmente gnóstica e dualista”; porém, é mais aceitável entender que a doutrina das duas naturezas serve para explicar simplesmente que há algo que transcende a natureza física, estando além das competências de observação e mensuração.

A praktri é uma reflexão de purusha. Daí surge um ensinamento de que o espírito é “anterior” à matéria: há uma clara hierarquia entre esses dois domínios da única realidade. Essa “anterioridade” em relação à matéria ocorre pelo entendimento cosmológico do samkhya, em que a prakrti, mesmo sendo tão real e eterna quanto purusha, é dinâmica e criadora. Sua existência surge a partir do contrabalanço de seus três “modos de ser”, os gunas. São eles sattva (modalidade da luminosidade e da inteligência), rajas (modalidade da energia motriz e atividade mental) e tamas (modalidade da inércia estática e obscuridade psíquica). Os gunas estão em perfeito equilíbrio original:

A emanação da praktri ocorre pelo parinâma (impulso de evolução), com as partes desigualmente distribuídas. 

Eliade cita um sutra que resume toda essa progressão:

Sâmkhya-Sûtra, I, 61: “praktri é o estado de equilíbrio de sattva, rajas e tamas. Da prakrtri surgiu mahat [massa energética]; de mahat, ahamkâra; de ahamkâra, os cinco tanmâtra e as séries dos órgãos dos sentidos; de tanmâtra surgiram os stulabhûtani (elementos materiais, moléculas)”.

Não vou me deter em explicações de todos os aspectos dessa progressão. Para esta exposição, o que vale apontar, por enquanto, é que ahamkâra (“ego”) é o “conhecimento de si”, propagando-se na série dos onze princípios psíquicos (manas ou o sentido interno, que coordena as faculdades da alma; os cinco sentidos cognoscitivos e os cinco sentidos conativos), e na série das potências físicas (tanmâtra).

A influência que ahamkâra exerce sobre o homem é decisiva para definir o sofrimento. De acordo com o samkhya, a raiz da sofrida condição humana é yogiatâ, a confusão de buddhi (inteligência) com o Si (purusha), que ocorre por uma falsa solidariedade (ignorância) destas competências psicomentais. Ocorre que há uma ambivalência em tal questão, uma vez que tal confusão inata ao ser humano, sugere que todos os itens que surgem da progressão da praktri anseiam, sem se dar conta, pela liberação do purusha.

Chegando ao ponto da união entre espírito e matéria, o samkhya compreende que a qualidade do sattva (modalidade da luminosidade e da inteligência) reflete purusha, sem que com isso o Si perca suas modalidades ontológicas. Esse ponto doutrinal é a premissa que as técnicas do yoga utilizam para garantir ao homem sua liberação. A mesma buddhi (raciocínio, capacidades intelectivas) que confunde-se com purusha (a partir da já aludida yogiatâ) é capaz de, em sua vertente sattvica, refletir o Si. A liberação ocorre quando buddhi conduz o homem até o limiar do despertar, sendo que subsequentemente, todos os elementos injustamente atribuídos ao purusha se “retiram”. O corpo permanece pela existência de resíduos kármicos; após a morte, purusha está liberado por completo.

Para atingir a liberação, existem os yogangas (“membros” do yoga), técnicas que, na maioria das vezes, são seguidas em ordem. Há um pressuposto radical que acompanha a busca da liberação: a superação da condição humana. É necessário negar que o purusha tenha atributos, considerando os “valores” (sofrimento, prazer etc.) como sendo exteriores ao Si [vairagya?]. É a negação de yogiatâ, que é, ao mesmo tempo, introdução e conclusão na busca pela liberdade.

Após vairagya (desapego) explicado nos termos acima, os três primeiros angas (“membros”) do yoga dizem respeito a três etapas para aquisição de pratyahara, traduzida por Eliade como “faculdade de libertar a atividade sensorial da influência dos objetos exteriores”. As três técnicas para adquirir essa autonomia inicial são:

Egakagratâ → Concentração em um único ponto. Seu valor é mais conceitual, o primeiro passo para se deixar levar por vasana (“turbilhão” mental, alimentado por nossa memória e contato sensível com objetos exteriores), orientando citta vritti (consciência) e impedindo que esteja fora de controle.
Asana → Diz respeito às posturas corporais. Tais posturas devem cessar completamente a inquietude do corpo, concentrando-o numa posição agradável e estável.
Pranayama → É a técnica yóguica de respiração, que deve ser ritmada e controlada, com o propósito inicial de controlar os estados mentais, uma vez que se entende uma estreita relação entre a respiração e a concentração (bem como com todos os órgãos do corpo). Com pranayama, os longos intervalos de inspiração e expiração permitem ao yogi o alcançar de uma grande concentração, inclusive sobre estados inconscientes, com extraordinária lucidez.

Essas técnicas preludiam o que há de mais profundo na prática yóguica. Esses três primeiros angas permitem ao praticante a superação do automatismo do homem e de sua consciência. Constantemente, Eliade observa que a diferenciação em relação ao estado humano é algo fundamental no yoga. Após adquirir autonomia em relação aos objetos exteriores, um yogi começa a dispor de um maior entendimento de si (obtém acesso ao seu subconsciente) e dos objetos exteriores, uma vez que citta (intelecto) ainda conta com as representações sensoriais, já que tal percepção se dá por seus poderes, não por um contato ininterrupto com os objetos (independência de vasana – ação e pensamento). Assim sendo, a relação contemplativa garante o conhecimento das coisas tais como elas são. A técnica contemplativa está apoiada em samyama, os últimos três yogangas (dharana, dhyana e samadhi):

Dharana → Enquanto ekagratâ se detém no conceito, dharana diz respeito à concentração para compreender. Concentra-se em algum chakra ou objeto exterior.
Dhyana → Estado meditativo.
Samadhi → Êxito na meditação.

A descrição da meditação é deveras críptica no capítulo que diz respeito ao Yoga em si. Porém, creio que é possível entender samadhi sem uma explicação delongada sobre dhyana, e é exatamente isso que o Eliade faz. 

Samadhi é considerado “indescritível”, não importando o ponto de vista. Porém, para tratar de samadhi gnosiologicamente, é possível tomar um empréstimo da “epistemologia” da experiência espiritual. Sem embargo, a título de comparação, descrever samadhi está para o samadhi em si, assim como uma fórmula físico-matemática está para um fenômeno físico: são claras as limitações. Seria até possível apontar uma ousadia academicista por parte do Eliade, caso não houvesse tanta importância do samadhi como “coroação” das técnicas yóguicas, seguidas com tanta dedicação pelo yogi. Ademais, sua exposição, salvo exceções, seguiu muito aquilo que fora apontado pelos textos tradicionais e seus respectivos comentários. Isto se dá porque muitos shastras relacionados ao Yoga (e também a outras darshanas) têm como objetivo principal apresentar inúmeros estados contemplativos superiores para que o praticante possa se situar na progressão espiritual, sendo assim textos de teor prático, não meramente especulativo.

Resumidamente o samadhi é o estado contemplativo em que se capta o objeto “em si mesmo”, sem interferência da imaginação. É como se houvesse, de fato, um conhecimento puro, livre das relações que delimitam um objeto; a indistinção entre conhecimento do objeto e objeto do conhecimento, ou, mais especificamente, “quando o dhyana se libera dos conceitos separados de meditação, objeto de meditação e sujeito meditante, e se mantém somente na forma de objeto meditado” - Vijñâna Bhiksu (citado por Eliade). Capta-se a essência do objeto conhecido.

A descrição acima foi dada prescindindo de maiores detalhes. Isso porque existem dois tipos de samadhi, samprajñata (com suporte; subdividido em quatro partes) e asamprajñata, que é justamente o que fora apresentado no parágrafo anterior (samadhi sem suporte). Deterei-me a apontar que o samadhi com suporte é descrito por razões técnicas, já que engloba “estágios” em que ainda há resquícios de imaginação sobre o objeto meditado, desde um “conhecimento” básico sobre o objeto, até ao limiar de asamprajñata samadhi, que é livre de sâmskaras (impressões, resíduos do subconsciente – relações que delimitam um objeto).

Finalmente, é possível obter um samadhi supremo, que diz respeito à liberação. Ela ocorre quando há total supressão (quando ainda em vida, jîvanmukti) de buddhi; quando há uma identificação suprema com o Si. É o estado incondicionado em que não há mais experiência, uma vez que não há mais relação entre a consciência individual e o mundo, reconhecendo-se a identidade com a consciência universal. Num estado de realização metafísica, não se vive já no tempo, nem sob o domínio do tempo, mas na eternidade, além das três modalidades temporais de passado, presente e futuro. Há uma ruptura de nível, em que o não-ser (o homem) coincide com o ser (purusha); absorção integral do conhecido pelo conhecedor. É este o zênite garantido pelo Yoga: a superação da condição humana e a absorção na realidade metafísica, a transcendência completa da problemática existencial.

O Yoga upanishádico originou diversas práticas através da transmissão oral mestre-discípulo (Paramparâ - “sucessão”), constituindo uma heterogeneidade de yogas. A partir da obra de Georg Feuerstein, "A Tradição da Yoga", tem-se uma introdução aos yogas mais proeminentes, a saber: Raja, Hatha, Jnana, Bhakti, Karma, Mantra, Laya e Kundalini (sendo os dois últimos ligados ao Hatha e integrados ao Tantra).

Raja Yoga

A explicação tântrica para Rajas é a de união entre Rajas (óvulo) e Retas (sêmen), respectivamente princípios metafísicos feminino e masculino, cuja harmonização (samarasa) na doutrina tântrica gera o “salto” para Samadhi, tornando o yogin resplandecente (râjate).

Hatha Yoga

É o cultivo do corpo como suporte para o alcance dos estados superiores. Considera a realização como totalmente inclusiva do corpo e da mente, constituindo-se a realização plena (ideal tântrico). São termos desta doutrina o corpo divino (divya-sharîra) e corpo de diamante (vajra-deha), bem como o interesse nos siddhis é característico no Hatha Yoga. Conclui-se que Hatha e Raja Yoga são complementares, com o primeiro visando a aquisição da perfeição do segundo.

Gorakshnath, fundador do Hatha Yoga e discípulo de Matsyendranath

Jnana Yoga

Os termos jnana e gnose apresentam a mesma origem etimológica (a raiz indo-europeia gno, que quer dizer “conhecer”). O Jnana Yoga é praticamente indistinto ao caminho do Vedanta, associando a sabedoria ao discernimento entre o Real e o ilusório (herança intelectual do Samkhya, que discerne os diversos níveis da realidade). Há a busca pela plena atenção na divindade, cultivo do desapego e discernimento atrelados a uma doutrina advaita e um caminho enunciado pelas upanishads, a via da sabedoria ou Jnana-Marga. Objetivam se tornarem jivan-muktas (libertos em vida), sendo uma dessas etapas o estado daqueles para quem a mente já se encontra em condição praticamente residual. Sadânanda em seu Vedânta-Sâra, texto do século XV, enumera quatro meios (sâdhana) para a realização:

1. Discernimento (viveka) entre o permanente e o transitório;
2. Renúncia (virâga) ao gozo do fruto (phala) das ações, sendo este o ideal do Karma-
Yoga;
3. As seis perfeições (shat-sampatti), sendo
1. Tranquilidade (shama) diante das adversidades;
2. Controle dos sentidos (dama);
3. Interrupção (uparati) – abster-se daquilo que não diz respeito à busca da
iluminação;
4. Resignação (titikshâ) – ânimo inabalável diante do jogo dos opostos (dvandva);
5. Concentração mental (samâdhâna) e concentração da mente em um só objeto;
6. Fé (shraddâ) ou aceitação inspirada da Realidade sagrada e transcendente.
4. O desejo da libertação (mumukshutva).

Feuerstein dispõe no capítulo o texto integral do Amrita-Bindu-Upanishad, sendo bindu (literalmente “ponto”) a semente, ou a mente no shastra em questão. A meta é a purificação da mente visando a libertação, pois uma mente anuviada obscurece o Si mesmo.

Bhakti Yoga

Doutrina majoritariamente dvaita, em que há comunhão e fusão com a Divindade. No Bhakti Sutra (“apego supremo ao Senhor”), são apresentados os 9 estágios da devoção:

1. Audição dos nomes da Divindade (shravana);
2. Cantar canções de louvor e glória (kritana);
3. Recordação de Deus (smarana) de maneira meditativa e amorosa;
4. Serviço aos pés (pâda-sevana) do Senhor, de acordo com a tradição que considera os
pés como foco específico da graça e poder (shakti);
5. Ritual (arcanâ) ao ishta-devatâ;
6. Prostração (vandana) perante a imagem de Deus;
7. Devoção servil (dâsya) a Deus, expresso no anseio intenso do devoto pela companhia
do Senhor;
8. Sentimento de amizade (sâkhya) com a Divindade, sendo a forma mais íntima e mística
de ligação a Deus;
9. Oferta de Si mesmo (âtma-nivedana), entrar no corpo imortal da Divina Pessoa.

A Fé (shraddha) é diferente da crença, pois é uma confiança profunda na realidade espiritual, não uma simples opinião.

O Bhakti Yoga apresenta uma ligação emocional a Deus, buscando-se a coalescência de todos os sentimentos à Divindade, até mesmo o ódio, entendendo o conteúdo da emoção muito menos relevante do que o objeto. No Vishnu Purana é contada a história do Rei Shishupâla, que por seu ódio tão intenso a Vishnu o fez chegar à iluminação (prática espiritual involuntária chamada de dvesha-yoga ou Yoga do “ódio”). Em tópicos apresento as ideias centrais do Bhakti Sutra de Narada, reproduzido integralmente por Feuerstein:

  •  Situa Bhakti acima dos outros caminhos para liberação;
  •  Entrega desapegada de todas as atividades mundanas e religiosas a Deus;
  •  Êxtase amoroso livre da ideia de “meu” para quem atravessa o oceano de mâyâ;
  •  O amor secundário (ou seja, o amor não supremo) está sujeito às distinções dos gunas;
  •  O direcionamento de todas as condutas a Deus inclui os sentimentos negativos, embora no nível secundário, sattva seja preferível a rajas e tamas.

Karma Yoga

Denota uma postura interior em relação à ação, que é vista como ação sacrificial. Por outro lado, a ação como objeto de apego produz sofrimento. Krishna diz no Bhagavad-Gita que as ações têm sua origem na Prakiti e seu movimento constante, sendo razoável duvidar que ahamkara (ego) aja de acordo com suas próprias vontades, mas sim sob o jugo dos gunas. O fato de existirem consequências para todos os atos indica a fragilidade do ego que presume a liberdade de ação.

Karma Yoga é como “wei-wu-wei” taoísta, ação na inação na qual se busca suprimir as ponderações do ego acerca da ação, que passa, daí em diante, a fluir espontaneamente. Feuerstein chama a atenção para as ações dos iluminados, livre de agentes por trás e econômicas, tal como se a própria Natureza (em sentido superior) agisse. Dessa forma, Karma Yoga é o sacrifício do ego, buscando isentá-lo das ações e inações a partir da não identificação. De acordo com a lei do Karma, as ações são reflexo do ser interior, mas há uma via de mão dupla na qual nosso ser exterior acaba influenciando nosso interior. Resulta que este é o motivo pelo qual temos que tender para o bem e evitar o mal.

Mantra Yoga

Doutrina do Mantra Vidya ou Mantra Shastra que compreende o universo em estado de vibração (spanda), buscando a libertação através da concentração da mente, exigindo o mesmo grau de auto-sacrifício que as outras formas de Yoga para que se obtenha resultado.

De acordo com Swami Sattwikagranya, mantras são formas sonoras que nos ligam à divindade transmitindo algo além do significado direto das palavras. Há um vislumbre do Divino em todas as formas belas, mas o poder dessas impressões de origem teofânica se perde em vista da agitação, do fluxo incessante da mente e das coisas. Abhinavagupta diz que um único mantra é como uma única roda d’água que ativa vários mecanismos: ativa as divindades a ele associados mediante a repetição constante. Sem mais esforços necessários, há mudança na consciência do praticante.

Laya Yoga

Dissolução dos agregados mentais até que reste o Si mesmo transcendental. Há compreensão do processo de iluminação espiritual como um retorno da multiplicidade à unidade, valendo-se de práticas e conceitos tântricos como corpo sutil (sûkshma-sharira), chakra (centros psico-energéticos), correntes ou canais (nadi).

O Laya pode ser entendido como a fase meditativa superior do Hatha Yoga. Em todas as formas de Yoga, a não-identificação com o ego e a identificação com o Supremo Si é a tônica principal, mas a o Laya presta atenção ao aspecto psicoenergético do processo, como a ascensão da Kundalini.

Referências bibliográficas:

Yoga - Imortalidade e Liberdade. Mircea Eliade
A Tradição do Yoga. Georg Feuerstein

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